Vale apena partilha conhecimento, por isso transcrevo abaixo o artigo de Néviton Guedes intitulado O legislador e a tarefa de concretizar a Constituição", publicado Revista Consultor Jurídico, 7 de maio de 2013.
Boa Leitura!
Numa
democracia constitucional, a exemplo do que ocorre no Brasil, cabe ao
legislador, em primeiro lugar, a tarefa de concretizar a Constituição. Com a
edição de normas infraconstitucionais, o Poder Legislativo é instado, em muitas
situações, tanto a conformar como a restringir o âmbito de
proteção das normas de direito fundamental. E, de fato, todas as vezes que o
Poder Constituinte, mediante reserva de lei, autoriza a intervenção de algum
órgão ou poder estatal para conformar ou mesmo limitar um direito fundamental,
em primeiro lugar e precipuamente, o que se faz é atribuir essa tarefa ao Poder
Legislativo. Vejamos mais de perto essa específica função do legislador.
Não
obstante ninguém mais ouse, seriamente, negar o fato de que todas as normas
constitucionais possuem eficácia, nem todas as normas com hierarquia
constitucional, especialmente os direitos fundamentais, apresentam — de pronto
e por si mesmas — os elementos normativos essenciais à sua completa eficácia e
imediata aplicação. Por outro lado, da natureza mesma de muitas normas
constitucionais — quando veiculadas na forma de princípios — resulta o fato de
que, não raramente, essas normas entram em colisão umas com as outras e, por
isso mesmo, demandam alguma forma de limitação e restrição ao seu âmbito de
proteção. Assim, enquanto algumas normas constitucionais carecem — para a sua
perfeita aplicação — de normas conformadoras, outras exigem — para a
solução de colisão com outras normas também constitucionais — a edição de
normas de restrição.
Ao
estudarem-se as normas de direitos fundamentais, como bem adverte Gomes
Canotilho, pode-se chegar à errônea conclusão de que todas as normas de direito
ordinário referidas aos direitos fundamentais têm como escopo restringi-los. A
realidade, contudo, conclui Canotilho, é completamente diferente: “muitas
normas legais pretendem completar, complementar, densificar, concretizar, o
conteúdo fragmentário, vago aberto, abstrato ou incompleto, dos preceitos
constitucionais garantidores de direitos fundamentais”, cumprindo, pois,
verdadeira função conformadora. Assim, segundo a precisa lição do
ilustrado professor de Coimbra, são “normas legais restritivas aquelas que
limitam ou restringem posições que, prima facie, se incluem no domínio
de protecção dos direitos fundamentais. As normas legais conformadoras
completam, precisam, concretizam ou definem o conteúdo de protecção de um
direito fundamental”.
Apenas
para ficar em exemplos bastantes conhecidos, o conjunto de normas de trânsito,
prescritas na Lei 9.503/97, que conformam o Código de Trânsito Brasileiro, nada
mais são do que restrições impostas à liberdade fundamental de
locomoção, com a finalidade de proteger um sem-número de outros direitos
fundamentais — como a vida, a integridade física e mesmo a liberdade de
locomoção de outras pessoas — que, entretanto, no dia a dia da vida em
sociedade, entram inevitavelmente em colisão a liberdade de locomoção. Por sua
vez, boa parte das normas do Código Civil que disciplinam o direito de propriedade
nada mais são do que normas conformadoras desse direito fundamental.
Portanto,
como se percebe, diversamente do que ocorre no caso das normas restritivas, na
conformação, não se pretende afetar, reduzir, condicionar, diminuir ou limitar
um direito fundamental, pois, no caso de conformação, o seu âmbito de proteção
(Schutzbereich) permanece intacto. Ao conformar um direito
fundamental, não se busca coibir a conduta, ou condutas, que são abrangidas por
seu âmbito de proteção. Pelo contrário, o que se visa é tornar diretamente
explícita, com exata delimitação, a possibilidade e a abrangência de seu
exercício.
Não
é difícil de perceber que alguns direitos fundamentais, para o seu mais
completo e adequado exercício e concretização (pense-se nos
direitos de greve ou de propriedade, ou ainda na educação e na saúde), fazem
pressupor a intervenção conformadora do Estado, razão pela qual se pode
dizer que, nesses casos, faria parte desses direitos também uma garantia de
organização ou de instituição conformadora (Einrichtungsgarantie). Em
termos mais incisivos, já advertira K. Hesse que, “para se tornarem eficazes, a
maioria dos direitos fundamentais necessita da conformação jurídica das
relações e âmbitos da vida que eles devem garantir”. Naturalmente, essa
organização é, em primeiro plano, tarefa do legislador.
Que
o legislador possa conformar o âmbito normativo de um direito fundamental não
significa, obviamente, que ele possa dispor desse direito de hierarquia constitucional.
Aqui se percebe, pois, um grave problema da conformação dos direitos
fundamentais: de um lado, ninguém o discute, os direitos fundamentais existem
independentemente de sua conformação jurídica pelo legislador ordinário e, mais
do que isso, na verdade, os direitos fundamentais vinculam e obrigam toda a
ordem jurídica estatal, assim como todos os atores que participam de sua
conformação; entretanto, de outro lado, o completo ou, pelo menos, o mais
adequado exercício de um direito fundamental pelos indivíduos pode pressupor a
intervenção institucionalizadora ou organizadora do Estado e, mais
especificamente, do Poder Legislativo.
Em
muitos casos, percebe-se facilmente, esse problema agrava-se quando a
Constituição não distingue entre conformação e limitação de direitos
fundamentais. Deve-se, pois, quando se estuda a relação do direito ordinário
com os direitos fundamentais, buscar evitar indesejáveis confusões e para
tanto, valendo-se do auxílio da teoria constitucional, destacar as normas legais
restritivas das normas legais conformadoras.
Como
nem sempre será tarefa fácil destacar uma de outra realidade normativa, é
recomendável que mesmo normas legais meramente conformadoras possam,
sobretudo quando duvidoso seu enquadramento, demonstrar que se submetem às
assim chamadas restrições de restrições (Schranken-Schranken), que
são os limites impostos às normas legais restritivas de direitos
fundamentais, entre os quais encontra posição destacada o princípio da
proporcionalidade, bem como as suas três partes constitutivas (adequação,
necessidade e proporcionalidade em estrito sentido).
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